O
Combate à Exclusão Social pela Educação Emancipatória
“É no problema da educação que assenta o
grande segredo do aperfeiçoamento da humanidade”.
– Immanuel
Kant (22/04/1724 a 12/02/1804)
Em
artigo anterior[1],
abordei o papel da Defensoria Pública e dos demais integrantes do Sistema de
Justiça na propagação de um modelo de educação emancipatória, através do qual a
prevenção ao surgimento de conflitos perpassa pela transmissão plena de
conhecimento crítico à sociedade, viabilizando a conscientização de cada um de
seus membros sobre seus direitos e deveres, mas, principalmente, sobre seu
papel como verdadeiros agentes de transformação social.
Não
há que se falar em democracia se os integrantes do corpo social não são
conscientes do papel que podem e devem desempenhar na construção de uma
sociedade mais igualitária e solidária. A conscientização da população torna-se
ainda mais difícil quando se trata da abordagem de grupos vulneráveis[2], especialmente
crianças e adolescentes.
O
art. 227 da Constituição Federal (CF), lido conforme o art. 1º, III, define,
com base no metaprincípio da dignidade da pessoa humana, que há um superior
interesse na proteção integral de crianças e adolescentes, em comparação com os
demais grupos sociais, dotando-os também de prioridade absoluta na consecução
de políticas públicas que reflitam melhorias em seu amadurecimento sadio, eis
que são pessoas em situação peculiar de desenvolvimento.
Ao
longo da história, foram elaborados diversos documentos internacionais que
reconheceram justamente o superior interesse, a necessidade de proteção
integral e a prioridade absoluta de crianças e adolescentes, tais como a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948; a Declaração dos Direitos da
Criança de 1959; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966; a
Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969; as Regras Mínimas das Nações
Unidas Para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude de 1985
(Regras de Beijing); a Declaração Mundial Sobre a Sobrevivência, a Proteção e o
Desenvolvimento das Crianças nos Anos 90; as Diretrizes das Nações Unidas Para
a Prevenção da Delinquência Juvenil de 1990 (Diretrizes de Riad); as Regras
Mínimas das Nações Unidas Para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade de
1990; a Convenção Sobre os Direitos da Criança de 1990; e a Declaração do
Panamá de 2000 (X Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo –
“Unidos Pela Infância e a Adolescência, Base da Justiça e da Equidade no Novo
Milênio”)[3].
Apesar
das mais variadas discussões sobre o critério etário, especialmente no que se
refere à controversa “maioridade penal”[4], é
fato que a esmagadora maioria dos países que adotaram modelos de viés
democrático aponta a idade de dezoito anos como a “conclusão” do processo da
adolescência, iniciando-se a seguir a fase adulta[5].
Quanto
ao campo da psicologia, tem-se majoritariamente que a pessoa, desde seu
nascimento e até o momento em que completa seus dezoito anos de idade, passa
por diversas fases de elaboração essencial de sua personalidade, com foco para
a formação da identidade até o advento dos dezoito anos[6]. É
por isso que a legislação brasileira, seguindo o modelo internacional
prevalente, reconhece crianças e adolescentes como pessoas em situação peculiar
de desenvolvimento.
Segundo
a Nota Técnica nº 15 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA):
“Existem várias abordagens que explicariam a
etiologia criminal de jovens. Uma delas, a teoria do autocontrole [Hirsch e
Gottfredson, 1983], imputa às deficiências educacionais, no processo de
socialização do indivíduo, que segue dos três anos à pré-adolescência, o não
desenvolvimento de mecanismos psicológicos de autocontrole, o que explicaria
comportamentos desviantes, vícios, delinquência e, posteriormente, crimes.
Outras teorias, como da desorganização social [Shaw e McKay (1942) e Sampson
(1997)] e do controle social [Hirschi, 1969], colocam ênfase nos elos de
ligação e concordância com as crenças e valores da sociedade, que funcionariam
como mecanismos dissuasores internos à transgressão. Já na teoria do
aprendizado social [Sutherland, 1973], o comportamento delituoso é aprendido a
partir de interações pessoais com indivíduos, no grupo de amizade e conhecimento.
Thorneberry (1996), com a teoria interacional, postulou que o comportamento
delinquente não é uma constante na vida do indivíduo, mas tem início aos 12 ou
13 anos, atinge o ápice aos 17 anos e termina antes dos 30 anos. Por outro
lado, este autor enfatizou os efeitos recíprocos entre os sentimentos de
ligação filial e escolar com o aprendizado, a partir de experiência com grupos
de amizades. Ou seja, ao mesmo tempo em que o processo de supervisão e
orientação dos pais, por exemplo, interfere nas escolhas das amizades do jovem,
o inverso também ocorre”[7].
É
justamente nessa fase da vida que a pessoa, ainda em processo de elaboração de
sua identidade, está mais vulnerável ao ingresso no sistema penal. Diz-se
“sistema penal” porque o polêmico sistema socioeducativo, guardado para
adolescentes entre doze e dezoito anos de idade, definido principalmente na Lei
nº 12594/2012, pouco ou nada difere, na prática, do sistema penal propriamente
dito, guardado para os adultos.
Independentemente
do modelo teórico adotado, é perceptível que, nessa fase inicial da vida, a
pessoa está mais suscetível à formação de sua identidade pelas experiências a
que se abre ou que lhe são impostas, modificando e ramificando os caminhos que
pode vir a seguir – muitos deles, então, levando à criminalidade.
Concluindo
o raciocínio elaborado na Nota Técnica nº 15, o IPEA aponta que “As pesquisas científicas não conseguem
identificar efeitos significativos ou relevantes do endurecimento das leis e,
em particular, da mudança de status de imputabilidade penal para adultos, para
coibir a criminalidade violenta. Por outro lado, inúmeros trabalhos têm
apontado um papel bastante efetivo das ações que caminham no sentido de se
prover maior orientação e oportunidades educacionais e laborais para jovens
como forma de mitigar o problema do crime”[8].
Significa
dizer, então, que a preocupação primordial com o fornecimento de educação às
crianças e aos adolescentes pode produzir o efeito de redução da criminalidade
e da vitimização, em contrapartida ao investimento maciço atual que o Estado
promove em medidas que resultam em encarceramento de jovens, sobretudo negros e
pobres[9].
Trata-se de decorrência de um processo de exclusão social que utiliza a prisão
como forma de controle da população, “afastando” da sociedade as pessoas
consideradas “indesejáveis” pelos articuladores do sistema, de cunho
notoriamente racista.
A
propósito, Michel Foucault, em “Vigiar e Punir”[10],
aponta com maestria a relação entre condições socioeconômicas, etnia, grau de
escolaridade e taxas de encarceramento, concluindo que, ao modo do processo de
controle social originalmente militar (e depois levado para a escola, a
indústria e, finalmente, para a prisão), baseado na disciplina, pessoas
advindas de determinadas camadas sociais são mais suscetíveis a ocupar os
espaços prisionais – como exaustivamente dito: jovens negros e pobres[11].
O
combate à exclusão social depende, portanto, de maiores investimentos em
educação, e não de legislações penais mais rigorosas ou mais unidades
prisionais. O ingresso prematuro de crianças e adolescentes no dito “mundo do
crime”, levando-os, na maioria das vezes, a instituições totais, funciona como
porta de entrada para o sistema penal adulto[12],
do qual dificilmente alguém, nas condições atuais, sai.
Dentre
as práticas educativas mais interessantes, merece destaque o Programa Abrindo
Espaços da UNESCO no Brasil, consistente na “abertura das escolas públicas nos fins de semana, com oferta de
atividades de esporte, lazer, cultura, inclusão digital e preparação inicial
para o mundo do trabalho. Ao contribuir para romper o isolamento institucional
da escola e fazê-la ocupar papel central na articulação da comunidade, o
programa materializa um dos fundamentos da cultura de paz: estimular a
convivência entre grupos diferentes e favorecer a resolução de conflitos pela
via da negociação”[13].
Dessa
forma, mediante o método de educação emancipatória, cujo foco é a solidificação
do senso crítico na pessoa (e não apenas o fornecimento de informação de maneira
“bancária”), é possível mostrar a crianças e adolescentes caminhos diversos que
podem ser por eles seguidos, afastando-os cada vez mais do ingresso no sistema
penal e, com isso, reduzindo o círculo vicioso de exclusão social gerando
criminalidade e vice-versa.
A
educação emancipatória na infância e na adolescência tem o potencial de
desfazer o panorama “exclusão social-criminalidade”, porque agirá já nos anos
iniciais de vida de pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, conscientizando-as
criticamente sobre o mundo em que vivem e qual o seu papel nas mudanças
vindouras.
Se
crianças e adolescentes são considerados o “futuro da nação”, então que as
estradas que precisem percorrer sejam ladrilhadas com o colorido da consciência
crítica, jamais com a monocromática faceta da exclusão social.
Rodrigo Ferreira dos Santos Ruiz
Calejon
Defensor
Público do Estado do Maranhão
Foi
advogado, delegado de polícia e analista do Ministério Público do Estado de São
Paulo.
Aprovado
no concurso para defensor público do Estado de São Paulo (VII).
Bibliografia:
1.
SILVA, Marco Junio Gonçalves da. Tratados
internacionais de proteção infanto-juvenil. In:
http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12072&revista_caderno=12.
Acesso
em outubro de 2016.
2.
CERQUEIRA, Daniel & COELHO, Danilo Santa
Cruz. Redução da Idade de Imputabilidade Penal, Educação e Criminalidade. Nota
Técnica nº 15 do IPEA. Rio de Janeiro, 2015.
3.
FOUCAULT, Michel. “Vigiar e Punir: Nascimento
da prisão”, Editora Vozes, 2015.
[2]Relembrando: vulnerabilidade
é toda e qualquer situação, de cunho econômico ou não, que inviabilize ou possa
inviabilizar o exercício pleno de direitos fundamentais por um indivíduo, um
grupo de indivíduos ou mesmo uma coletividade indeterminada, abrangendo
principalmente grupos sociais estigmatizados, tais como crianças e
adolescentes, idosos, mulheres em situação de violência doméstica, homossexuais
e transgêneros etc.
[3]SILVA, Marco Junio
Gonçalves da. Tratados internacionais de proteção infanto-juvenil. In: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12072&revista_caderno=12. Acesso
em outubro de 2016.
[4]Atualmente, “São penalmente inimputáveis os menores de
dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial” (art. 228 da CF).
[5]Por exemplo, Alemanha,
Argentina, Bulgária, Chile, Espanha, França, Grécia, Inglaterra, Itália, Japão,
México, Noruega, Países Baixos, Uruguai etc. Fonte: www.criança.mppr.mp.br.
[6]Conforme a Teoria
Psicossocial do Desenvolvimento, de Erik Erikson. A propósito, vide: https://psicologado.com/psicologia-geral/desenvolvimento-humano/teoria-psicossocial-do-desenvolvimento-em-erik-erikson.
[7]CERQUEIRA, Daniel
& COELHO, Danilo Santa Cruz. Redução da Idade de Imputabilidade Penal,
Educação e Criminalidade. Nota Técnica nº 15 do IPEA. Rio de Janeiro, 2015.
[8]Idem.
[9]A população carcerária
brasileira é, hoje, composta majoritariamente de jovens negros e pobres,
alcançando patamar superior a seiscentos mil encarcerados, colocando-a na
quarta posição mundial, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. Sobre
isso, vide: http://www.justica.gov.br/noticias/populacao-carceraria-brasileira-chega-a-mais-de-622-mil-detentos. Acesso em outubro de
2016.
[10]FOUCAULT, Michel.
“Vigiar e Punir: Nascimento da prisão”, Editora Vozes, 2015.
[11]Conforme relatório
elaborado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), apesar de 51% da
população brasileira ser composta de negros, a população carcerária compreende pelo
menos 67% de pessoas negras (INFOPEN 2014 e IBGE 2010). Para aprofundamento, vide:
https://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf.
[12]Nunca é demais lembrar
que os presídios, na linguagem das pessoas encarceradas, são “faculdades do
crime” – o que nos permite enxergar o sistema socioeducativo como o “ensino
fundamental e médio” desse sistema distorcido.